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O pensamento original de Lélia Gonzalez é referência para uma pedagogia crítica e antirracista

#Educação#EducaçãoAntirracista#FormaçãoDocente

A imagem é uma montagem com a foto da intelectual Lélia Gonzalez e um fundo roxo e amarelo

Lélia Gonzalez é uma das pensadoras mais importantes do Brasil. Antropóloga, historiadora, geógrafa e filósofa, ela articulava diversas áreas do conhecimento para expor as opressões e dominações escondidas nas relações de raça e gênero, numa época em que pouco se falava sobre isso. Militante ativa, é uma das fundadoras do Movimento Negro Unificado (MNU) e precursora do feminismo negro, sendo referência para intelectuais nacionais e estrangeiros.

Nascida em Belo Horizonte (MG), Lélia também foi professora da educação básica e do ensino superior. Em seus escritos, traz experiência vivida e contexto histórico para analisar algumas das questões mais profundas do nosso cotidiano, como o racismo estrutural, a falácia da democracia racial e a contribuição das mulheres negras nos modos de falar, sentir e pensar da sociedade brasileira. Na educação, seu trabalho é base para a construção de uma pedagogia crítica e verdadeiramente antirracista.

Agora boa parte do seu acervo de textos vai ser disponibilizado gratuitamente e gradualmente na internet pelo Instituto Memorial Lélia Gonzalez. Com inauguração marcada para 1°de fevereiro, data em que Lélia completaria 88 anos, o espaço será dedicado ao estudo e à divulgação de sua produção intelectual, além de cursos de capacitação antirracista e uma exposição com fotos tiradas por ela. A sede física deve abrir em breve, em Brasília (DF). “É um Instituto para preservar sua memória, perpetuar seu legado e garantir acesso à cultura, educação, história e arte para todos”, explica a historiadora Melina de Lima, neta de Lélia e uma das responsáveis pela missão de manter viva a luta da avó.

Lélia Gonzalez e a descolonização do pensamento

Na visão de Melina, o legado de Lélia na educação fornece ferramenta teórica para “descolonizar o pensamento”. “É sair da caixinha do padrão branco europeu. Precisamos ler Lélia! Ela teorizou nossa luta e seus estudos são bem atuais”, defende a historiadora, destacando que já nas décadas de 70 e 80, a avó liderava lutas que só foram conquistadas muito tempo depois, como as políticas afirmativas e a regulação do trabalho doméstico.

Sendo assim, seu ativismo a tornou uma das pessoas públicas mais atuantes no início da redemocratização do Brasil, na década de 80. Quem convivia com ela, como Melina, aprendia a se reconhecer num lugar de força e potência. “Devo tanto a ela, mas principalmente a coragem de sempre ter tido a consciência de quem eu sou, da minha cor, minha ancestralidade e até da minha orientação sexual. Saber que ela lutava também pelos direitos LGBTQIA+ me ensinou a sempre combater qualquer tipo de violência racial, de gênero e de sexualidade.”

Lélia Gonzalez segura a neta, Melina de Lima, ainda na maternidade, em 1985. Crédito: acervo pessoal

Autoestima, antirracismo e senso crítico

A pesquisadora e socióloga Camila Santos Pereira é professora de ensino fundamental do Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira – CAP UERJ, no Rio de Janeiro. Para ela, a autora é uma referência, não só para desenvolver uma pedagogia crítica, como também para a construção da autoestima da mulher negra.

“A leitura de Lélia tem grande impacto em quem está no meio universitário e sofre com o racismo institucional. Quando a gente lê um texto dela, vira uma chave. Ela tem a capacidade de mover as pessoas. Por isso tentaram silenciar sua produção acadêmica”, diz, destacando que a autora não integra a bibliografia dos cursos de graduação das universidades brasileiras. “A maioria dos docentes são brancos e não conhecem autores negros. Nós, negras e negros, que fomos entrando a partir das políticas afirmativas e trouxemos essas referências silenciadas para dentro da academia”, explica.

Em relação à sua prática docente, Camila destaca que alguns dos conceitos mais originais de Lélia ajudam a pensar nas relações que estão se constituindo na sala de aula e, por isso, inspiram verdadeiras transformações em direção de uma educação antirracista. Por exemplo, ao rebatizar nosso continente como Améfrica Ladina, a autora ultrapassa as fronteiras dos países para dar protagonismo às contribuições de povos africanos e indígenas.

Dessa forma, é inspiração para que professores de História questionem uma visão limitada da escravização no Brasil. “Eu, enquanto criança negra, tinha aversão quando esse assunto era trazido na minha escola. Não queria ser vista pelo sofrimento dos meus antepassados. Hoje percebo que Lélia traz um senso crítico transformador, pois sai da narrativa da inferiorização de corpos negros, traz a responsabilização dos povos europeus no processo de colonização e faz a gente avançar no debate sobre privilégios”, destaca Camila.

O pretuguês falado no Brasil

Outro conceito original da autora nos convida a interpretar o idioma falado no Brasil a partir das características de africanização da língua. Nesse sentido, Lélia vai destacar que falamos pretuguês, ensinado pelas mulheres negras escravizadas aos filhos e filhas dos senhores das casas grandes.

“O que a Lélia me inspira na minha prática docente é essa questão de valorizar o conhecimento que chega da sala de aula e construir minhas referências a partir de referências que problematizam e questionam as relações do nosso cotidiano”, sintetiza Camila, que junto com os pesquisadores Anamaria Ladeira Pereira e Fernando Pocahy, escreveu um artigo sobre a potência pedagógica do pensamento de Lélia Gonzalez, a partir dos estudos do grupo Geni – Estudos de Gênero e Sexualidade do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

As reflexões sobre pretuguês ajudam a professora de sociologia e filosofia Aline Martins a discutir com seus alunos as gírias constantemente faladas por eles, tirando o estigma que existe sobre elas. Em suas aulas com o Ensino Médio do CIEP (Centro Integrado de Educação Pública) 205 Frei Agostinho Fincias, que fica no Morro São João, no Rio de Janeiro, ela costuma se basear em Lélia Gonzalez para criar projetos que engajam e dão protagonismo aos estudantes.

Protagonismo estudantil

O contato com o pensamento da intelectual veio só em 2018, enquanto Aline procurava por cursos que a ajudassem a superar as dificuldades que seus estudantes tinham de entender as questões raciais. Desde então, vem trazendo alguns textos de Lélia Gonzalez e de outras pensadoras e pensadores negros para a sala de aula.

“Outros intelectuais sempre falaram por nós, mas nós somos sujeitos de nossas história, e não objetos de pesquisa”, disse. “Acho muito importante para meus alunos conhecerem e se reconhecerem em pessoas negras que produzem conhecimento em diversas áreas, sejam de Humanas ou Tecnológicas. Lélia vem abrindo caminho de fala, do lugar de sujeito do saber.”

Ela explica que refletir sobre o lugar de mulher negra engajada que Lélia Gonzalez ocupava ajuda a colocar seus estudantes num lugar de potência e protagonismo. “Utilizei isso para trabalhar com meus alunos elaborando projetos. Eles não escutam propostas minhas, eles propõem junto comigo. Esse trabalho trouxe mais aliança entre nós. E eles passaram a ser produtores do conhecimento, sempre valorizando o legado da população afro-americana e brasileira nesse processo.”

Por que todo educador precisa conhecer Lélia Gonzalez?
Por que todo educador precisa conhecer Lélia Gonzalez?